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Filosofia e IA, as novas armas dos redpill no YouTube

Investigação do Núcleo mapeou mais de 20 canais que utilizam inteligência artificial e o conceito de estoicismo para criar uma fábrica de conteúdos misóginos, sintéticos e monetizados pela plataforma

Filosofia e IA, as novas armas dos redpill no YouTube
Arte por Aleksandra Ramos

O segmento de vídeos de reafirmação e autocuidado masculinos – nicho gigantesco no YouTube há anos, conhecido como machosfera e dominado por homens que se classificam como redpill – passou a contar com um impulso significativo de inteligência artificial, cujos conteúdos gerados exploram o conceito de estoicismo moderno como fundamentação teórica para atrair mais homens a ideologias misóginas.

Um levantamento realizado pelo Núcleo em mai.2025 mapeou 21 canais monetizados pelo YouTube, que somam, juntos, 2.882 vídeos, num total de mais de 87 milhões de visualizações. A plataforma de vídeos pertence ao Google, que, por sua vez, é a maior empresa da holding Alphabet.

Um dos pontos em comum desses canais é a tentativa de usar o estoicismo como embasamento intelectual. O conceito, no entanto, é frequentemente apresentado de forma distorcida, trazendo princípios fundamentalmente contrários à antiga filosofia de Epicteto, Sêneca e Marco Aurélio.

Esses conteúdos se apresentam como neoestoicismo aplicado ao autocuidado, ao desenvolvimento pessoal e ao alto rendimento no trabalho e em atividades físicas, quando, na realidade, promovem isolamento social e misoginia – a qual está sempre presente, embora com diferentes níveis de explicitação a depender do canal.

O que é estoicismo?

Estoicismo é uma escola filosófica que nasceu no século III a.C. tendo como fundador Zenão de Cício. Seus principais filósofos são: o senador Sêneca; o escravo Epicteto e o imperador Marco Aurélio. O estoicismo valoriza a razão em detrimento das paixões. A ética estoica defende que o homem pode ser livre mesmo sendo escravo, pois a liberdade consiste em racionalizar e aceitar a sua condição no mundo.

Apenas um dentre todos os canais é produzido por uma mulher, evidenciando uma bolha de conteúdo masculinista, carregada de ideologia altamente antissocial e cheia de ressentimento contra as mulheres.

O que é masculinismo?

O masculinismo nasce entre os anos 1990 e 2000 como um contramovimento reacionário se opondo ao feminismo. Ele exalta a virilidade como uma virtude e torna esse estereótipo como ideal de masculinidade.

A pesquisadora Gracila Villaça explica em sua tese de doutorado que na ótica dos homens que pertencem a esse contramovimento, as mulheres já teriam alcançado a igualdade. E que o “masculinismo é de uma só vez estratégia e ideologia” que fabrica “um cenário de ‘pós-feminismo’ em que o contramovimento acusa a persistência dos feminismos de ser uma defesa dos privilégios das mulheres”.

Segundo o levantamento, no alto dessa estrutura de conteúdos neoestoicos estão canais produzidos sem auxílio em grande escala de IA (os chamados conteúdos orgânicos), que concentram 8,7% das visualizações (7,6 milhões). Assim como os outros, eles se valem do estoicismo como verniz acadêmico para envelopar uma ideologia de alta performance e desenvolvimento pessoal.

Abaixo deles, e em maior escala, estão de conteúdos sintéticos, que usam a IA em para gerar vídeos com estética greco-romana. Essa categoria representa 91,2% das visualizações (79 milhões).

Todos os vídeos carregam, em menor ou maior grau, valores ligados à machosfera como o ideal masculinista, como a família nuclear e o arquétipo da mulher aproveitadora. Muitos são acompanhados de artes de destaque que sensualizam mulheres e carregam palavras com fortes sentidos depreciativos.

NeoEstoicismo e auto-ajuda antissocial

Segundo a Dra. Gracila Vilaça, doutora pela UFMG, pesquisadora do R-EST (estudos de redes sociotécnicas) e especialista em ambientes masculinistas na internet, os vídeos redpill misturam teorias acadêmicas como estoicismo e psicologia evolucionista para passar credibilidade.

O estoicismo entra nesse movimento para resgatar um modelo do mundo antigo que confere um certo verniz cientificista à ideologia que esses grupos estão construindo
Gracila Vilaça, doutora pela UFMG 

A doutora conta que o resgate da Grécia Antiga já apareceu em momentos de crises socioeconômicas, como na revolução industrial e na Alemanha nazista.

“É como um contraponto ao saber acadêmico: o conhecimento que vem da internet, o self-made man, que aprende sozinho, que faz suas próprias pesquisas. É a figura do indivíduo autodidata, que rejeita o conhecimento das universidades e estabelece a Grécia Antiga como parâmetro”.

Exemplos de vídeos com conteúdo neoestoico recheados de misoginia

O "Homem Greco-Romano" é estabelecido como ideal masculinista por ser o fundador da civilização – e seu correlato na sociedade contemporânea seria o homem branco heteronormativo.

“[Esse homem] é o legítimo herdeiro dos direitos e, se não está no topo da sociedade hoje, então, segundo essa lógica, há algo errado com a própria sociedade”, explica Vilaça.

Fábrica de Conteúdos Sintéticos

Dos vídeos encontrados pela reportagem, 2.738 (ou 95%) são gerados por inteligência artificial, formando uma fábrica de conteúdos sintéticos. Os vídeos, muito parecidos uns com os outros, têm narração com timbre masculino grave, imagens em alusão ao homem greco-romano e falas construídas de forma a gerar impacto no espectador.

Conteúdos sintéticos podem ser reconhecidos pelos padrões robotizados na voz, imagens padronizadas e até conteúdo redundante. No YouTube, o conteúdo sintético é categorizado logo abaixo da descrição de cada vídeo.

Criadores de conteúdo são incentivados pelo YouTube a classificar vídeos alterados “significativamente ou gerado de forma sintética”: caso de não divulguem essas informações, os canais podem sofrer penalidades como remoção do conteúdo ou suspensão do programa de parcerias.

A própria plataforma dá exemplos do que são considerados conteúdos sintéticos: “O conteúdo sintético ou alterado pode incluir conteúdo total ou parcialmente alterado ou criado com o uso de ferramentas de áudio, vídeo, criação ou edição de imagens.”

Em suma, para que seja categorizado o conteúdo como sintético é preciso lançar mão de uso generoso de IA na geração do conteúdo. O uso dessas ferramentas nesses casos permite que os conteúdos sejam criados em larga escala e postados diariamente. Em alguns canais havia vídeos de mais de uma hora postados diariamente, algo humanamente inviável.

Outro fator chave é que para que IAs sejam capazes de criar tanto conteúdo com essa estética estoica e misógina é porque a internet em si já está repleta de conteúdos com essa temática.

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Usos menores, como filtros de beleza, mudança no fundo do vídeo para simular um carro em movimento, efeitos de áudio ou animações simples, são exemplos que não precisam ser informados.

Já alterações mais significativas, como deep voice, deep face, criação de áudio e simulações realistas são os exemplos que precisam ser informados para que o usuário não seja enganado.

Como fizemos isso

Pesquisamos no YouTube por meio de guia anônima o termo “estoicismo”, colocado o filtro para canais e os primeiros 30 passaram pelos seguintes critérios: precisavam ter conteúdo em língua portuguesa e mais de mil inscritos (necessário para monetização).

Depois usamos o YouTube Data API v3 para coletar dados públicos dos canais, como número de inscritos, visualizações, nome, descrição e etc. Com os critérios de língua e número de inscritos, os 30 canais foram reduzidos para 21 canais, e os que postam conteúdo sintético foram categorizados em 17.

A produção do código para extração dos dados no YouTube desta reportagem foi auxiliada pelo modelo GPT-4o. Ele foi utilizado para revisão do código e corrigir bugs decorrentes do processo.

Os dados, coletados pelo Núcleo no começo de mai.2025, foram omitidos da reportagem porque não queremos ajudar a difundir canais específicos com esse tipo de conteúdo.

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Caso você seja pesquisador ou pesquisadora, entre em contato via comunidade@nucleo.jor.br para que possamos compartilhar os dados.
Por Bruno Borges
Arte Aleksandra Ramos
Edição Alexandre Orrico e Sérgio Spagnuolo
Alexandre Orrico

Alexandre Orrico

Editor-fundador do Núcleo Jornalismo. Foi também gerente de comunidades no Brasil do ICFJ de 2021 a 2023. Já passou pela editoria de tecnologia da Folha de S.Paulo e foi editor do BuzzFeed Brasil.

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