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Brasil quer desenvolver IA, mas esbarra em falta de estrutura

O desenvolvimento do setor de inteligência artificial no país depende de energia renovável e investimentos em data centers sustentáveis, mas faltam políticas e orientações claras

Brasil quer desenvolver IA, mas esbarra em falta de estrutura
Arte por Aleksandra Ramos
Reportagem produzida em colaboração com a AI Accountability Network do Pulitzer Center.

O desenvolvimento da inteligência artificial no Brasil depende mais do que debates éticos e regulatórios: demanda também infraestrutura robusta.

A IA generativa depende de algoritmos avançados e requer infraestrutura especializada, superior à dos data centers tradicionais, com clusters densos e sistemas de alto desempenho.

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Data centers são instalações físicas projetadas para reunir servidores, processar dados e gerenciar grandes sistemas computacionais. Consomem muita energia e recursos naturais, principalmente se forem estações que alimentam sistemas de inteligência artificial.

Mas falta clareza nos projetos de lei e nos planos nacionais que falam sobre o tema. No PL da IA (PL 2338/2023), aprovado pelo Senado em dez.2024, um único artigo menciona data centers. Incluído por emenda do senador Carlos Viana (Podemos-MG), o texto prevê o “incentivo à ampliação da disponibilidade de data centers sustentáveis de alta capacidade de processamento de dados para sistemas de IA”, visando adensar a cadeia produtiva e os serviços digitais no Brasil, além de fomentar o setor produtivo e a pesquisa científica.

O Brasil, com cerca de 50% de sua matriz energética proveniente de fontes renováveis (segundo a Empresa de Pesquisa Energética), tem potencial para atrair grandes indústrias do setor.

Plano Brasileiro de Inteligência Artificial

Em jul.2024, o governo lançou o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA), chamado IA para o Bem de Todos (2024-2028), que busca promover o desenvolvimento, uso e governança da IA no Brasil de forma sustentável, inclusiva e orientada à solução de desafios nacionais.

Como mostrado pelo Núcleo no passado, o PBIA visa posicionar o Brasil como líder mundial em IA, promovendo o desenvolvimento tecnológico, econômico e social do país através de inovações sustentáveis e inclusivas.

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O PL 2338, conhecido como PL da IA, busca estabelecer um marco legal para o desenvolvimento e uso da inteligência artificial no país, definindo princípios éticos, direitos, obrigações e responsabilidades dos agentes envolvidos. O PBIA (Plano Brasileiro de Inteligência Artificial), por sua vez, apresenta uma visão estratégica para o desenvolvimento da IA no país, definindo prioridades, metas e ações.

O plano prevê um investimento total estimado em R$ 23 bilhões provenientes de fontes públicas (FNDCT, BNDES), privadas e internacionais.

Bruno Bioni, advogado e diretor da Data Privacy Brasil, ressalta a importância de haver um debate multissetorial do PBIA, incluindo áreas trabalhistas, ambiental e de infraestrutura, e não só de direito digital.

“A discussão sobre IA, sobre data centers, ainda é muito acrítica. Há um foco no curto prazo, sobre os ganhos com a potencial vinda de grandes empresas para o Brasil, mas não há um debate sobre as consequências a médio e longo prazo da exploração dessa indústria”, afirma Bioni.

André Fernandes, diretor do Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec) e doutorando em Direito e Inteligência Artificial, ressalta que os data centers requerem fontes de energia estáveis. E, apesar do apelo para uso de energia renovável, uma fonte estável geralmente vem de energia não renovável.

O especialista afirma que, embora haja esforços para regulamentar e tornar os data centers mais sustentáveis, ainda há um longo caminho a percorrer, especialmente no Brasil.

“A cadeia de produção da IA envolve extração de minérios e outros impactos ambientais. A gente tem um conjunto de ações como códigos de conduta que são voluntários e outros que são mais obrigatórios, que dependem de um processo de padronização de medidas que não aconteceu ainda. Então, é como se ela não tivesse a plena eficácia”, explica Fernandes.

Bioni alerta, também, para o risco de práticas extrativistas, onde o país forneceria apenas recursos (energia limpa) sem benefícios econômicos substanciais e questiona se a atração de data centers resultará em condições socioeconômicas e ecológicas sustentáveis a longo prazo.

“Podemos ter um cenário onde essas empresas alocam esses data centers aqui, consomem a nossa energia, mas os postos de trabalho para a economia real, sobretudo os qualificados, podem continuar sendo exercitados e criados fora do Brasil ou nesses países que teriam esse tipo de potencial. Isso pode, no final, inclusive gerar um encarecimento da energia para a própria população brasileira porque pode gerar  sobrecargas, bandeiras vermelhas, mais tarifas. Tudo isso ainda combinado com o movimento, já existente no Brasil, da privatização desse setor”, explica o diretor da Data Privacy.

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Infraestrutura Nacional de Dados

Outro ponto de destaque para o setor, previsto no PBIA, é a importância da criação de uma infraestrutura nacional de dados.

“O que está na antessala da inteligência artificial são dados. É preciso pensar no desenvolvimento próprio de inteligências artificiais, de refinamento de inteligências artificiais, no plural, não no singular, para poder atacar e endereçar as necessidades locais brasileiras, inclusive para sermos competitivos. É uma questão de soberania também. Não podemos contar apenas com agentes estrangeiros, precisamos ter uma infraestrutura representativa dos dados e das necessidades, o que, inclusive, pode ativar e abrir espaço para atores econômicos locais brasileiros”, afirma Bioni.

União Europeia e Estados Unidos

A União Europeia (UE) já possui regulamentação vigente sobre data centers, abordando a questão da eficiência energética — ao contrário do PL 2.338/23 em sua versão aprovada pelo Senado. No entanto, para Fernandes, o AI Act da UE tem algumas limitações.

“O AI Act apresenta uma visão otimista sobre o uso da IA para mitigar seus próprios impactos ambientais, uma abordagem pouco realista e não baseada em evidências. E a legislação cria exceções para sistemas de IA de interesse público, o que pode ser contraditório com os objetivos de sustentabilidade”, explica o diretor do Ip.rec.

No entanto, a diretiva sobre eficiência energética da UE impõe regras específicas: data centers acima de 500 kW devem relatar consumo de energia, uso de água e fontes renováveis.

“Eles têm que realizar a coleta de dados relatórios do consumo de energia, do uso de água, reaproveitamento das fontes de calor, do uso ou não de fontes renováveis, que é o que configura o data center como ecológico ou não, como citado na legislação. Mas essa própria configuração do datacenter ecológico, só por estar atrelado a uma fonte de energia renovável, é muito complexa também e é muito criticada, porque a cadeia de produção da inteligência artificial não envolve somente o data center funcionando”, explica Fernandes.

No PL que ficou conhecido como PL da IA (2338/2023), aprovado pelo Senado em dezembro, há apenas um artigo genérico sobre data center, incluso após apresentação de emenda do senador Carlos Viana, e que usa o termo sustentabilidade: “incentivo à ampliação da disponibilidade de data centers sustentáveis de alta capacidade de processamento de dados para sistemas de IA, com o adensamento dessa cadeia produtiva e dos serviços digitais relacionados no Brasil, com o objetivo de apoiar o setor produtivo e a pesquisa e o desenvolvimento técnico-científicos”.

Sobre o PBIA, Fernandes aponta que o plano é "mais humilde" em comparação com iniciativas internacionais. O investimento proposto pelo governo, de menos de R$ 5 bilhões, contrasta com os US$ 30 bilhões investidos pela China. Para o especialista, apesar do destaque para infraestrutura energética sustentável, falta clareza nas obrigações e políticas.

Recentemente, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, também anunciou investimento em data centers como foco na produção de IA baseada em energia limpa.

“A construção dos data centers, de acordo com essa ordem executiva, deve estar acompanhada de investimentos em novas fontes de geração de energia limpa para atender essa demanda adicional que centros vão gerar, sem comprometer o consumo normal já da população. Já existem pesquisas mostrando o destinamento da matriz energética para data centers em detrimento dos serviços para a população. Então, nos Estados Unidos, os projetos devem ter uma lógica de reutilização do calor desperdiçado, maximizar a energia, a água, enfim, os recursos utilizados”, explica Fernandes.

Reportagem Julianna Granjeia
Colaboração Sofia Schurig
Arte Aleksandra Ramos
Edição Alexandre Orrico
Sofia Schurig

Sofia Schurig

Repórter com experiência na cobertura de direitos humanos, segurança de menores e extremismo online. É também pesquisadora na SaferNet Brasil e fellow do Pulitzer Center.

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